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opinião

Outro dia

Saí para comprar pão. Pão de forma, pão francês, pão de queijo. Adoro pão. O cheiro do pão. Pão quentinho. Final de tarde. Ver as cores do fecho da jornada. O tom violáceo do arrebol. Acendendo chamas no horizonte da várzea. E preparando o véu da noite.

Saí também para trocar afetos. Com conhecidos que, como eu, transitam no efêmero. Ontem, conversei quase meia hora com uma senhora que foi às compras. Como eu. Terminamos encontrando um ponto comum: um primo meu que é casado com uma sobrinha dela. Vivemos numa taba, minha senhora! Disse-lhe eu.

Albert Camus escreveu que Tipasa, na primavera, é habitada pelos deuses. E que os deuses falam no sol. E no odor dos absintos. No mar couraçado de prata. A certa altura, o franco-argelino diz que a característica da juventude talvez seja uma vocação magnífica para as felicidades fáceis. Sei não. Tenho vontade de discordar. Porque, neste meu outono de prata, adoro o abandono de simplesmente estar. A ternura dos amarelos girassóis expostos na Jaqueira. E a convocação dos azuis estendidos ao Sul quando abro a janela.

Camus gostava muito de Florença. Sempre escreve sobre a cidade dos duques e do designe. E, depois de visitar o Recife e Salvador, ele disse que o Recife é a Florença tropical. Sobre o sítio florentino, escreveu: “Um dos únicos lugares da Europa onde compreendi que no fundo de minha revolta dormia um consentimento”.

Pessoas são culturas. A forma de falar. O modo de se dirigir ao outro. Refletindo dramas da história. Ou a improvável invenção de seus artistas. Certa vez, num trem, entre a Croácia e a Eslovênia, um soldado, armado, entrou no vagão. Sério, pediu meus documentos e, ríspido, ordenou: Sente-se. Em compensação, em outra ocasião, cheguei, certa noite, num hotel de Quebec. Era noite de Natal. E nevava. 

O funcionário deu-me boas-vindas, fez as anotações e disse: A cidade vai tentar atenuar o frio com o calor humano. E o senhor precisa voltar no verão para os concertos de rua.

Reler Gabriel Garcia Marques. Um dever. E um prazer. Numa agem de um de seus livros, ele conta a seguinte história:
“Fui a Praga com Carlos Fuentes e Julio Cortázar. Num trem. Solidários no medo de voar. Atravessamos a noite dividida das duas Alemanhas, seus oceanos de beterraba, suas imensas fábricas de tudo, seus estragos de guerra atrozes, seus amores desaforados.”

E prossegue: “Na hora de dormir, Fuentes teve a ideia de perguntar a Cortázar como e em que momento e por iniciativa de quem o piano tinha sido introduzido numa orquestra de jazz. Breve explicação: Cortázar adora e conhece de jazz. A pergunta era casual. E não pretendia saber nada mais que uma data e um nome. Mas a resposta foi uma cátedra que se prolongou até o amanhecer.”

Concluindo, penso noutras duas terras, sofridas e perigosamente ocupadas pela guerra. E nos versos de Schiller. Que inspiraram Beethoven a inseri-los no quarto movimento da Nona Sinfonia.
 



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